Desde garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea uma
dívida séria, que torno pública nesse escrito. Em 1956, passei uma
semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera,
pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os
hotéis estavam lotados, criando contratempo para turistas do interior
ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de
gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva
feita por telegrama ou telefone.
Estava há dois ou três dias
na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhá-lo
ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora
da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do
balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe a reserva. O
funcionário, homem, de uns sessenta anos e de uma honesta cara
escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me
surpreendeu e ia acabando por me indagar: ele não confirmava a
existência da reserva, nem deixava de confirmar. Como começasse a
protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo
cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma energia,
o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpa e trouxe afinal a ficha de
identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta
contígua e gigante.
Se o leitor conhece um homem forte, muito
forte mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma ideia
desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e
espetacularmente bêbedo. O monstro passou por cima com desprezo e,
agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e
insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o
gigante nos apontava enquanto dizia coisas. O empregado,
demonstrando possuir um bom instinto de conservação, deixava-se
sacolejar à vontade. Rosnando, o ciclope foi sentar-se de novo na
saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também bêbado,
mas sinistramente silencioso.
É hoje, pensei. Saí do meu
Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem
explicação por um bêbado. O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos
de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo
existencialista, o meu triste fim.
Indaguei ao empregado o
que se passava. Ficou mudo. Insistia na pergunta, e ele, sussurrando
desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro,
que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado;
segundo, que nós conseguiríamos por ser americanos, e norte-americanos.
Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto
a mim, se fosse americano só poderia ser filho de portugueses. Por
outro lado, o meu inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a
questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma
madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora
era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira:
─ American! American!
Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e
disse-lhe, exagerando minha alegria e o meu orgulho por isso, que não
éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros.
Não entendeu
ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa pátria,
voltando vociferar, em um esforço linguístico que contraia todos os
músculos do seu rosto:
─ American! Dólar! No like!
Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me
apareceu que a palavra “Brasilian” havia penetrado enfim em sua testa
granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:
─ Brazil?! No american? Brazil?
Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão
estranhamente deslumbrada e infantil que afirmei cheio de entusiasmo:
─ Yes, Brazil.
Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:
─ Brazil, Brazil.
Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça e grito com alma, como se saltasse o nascimento de um mundo novo.
─ Flamengo!! Flamengo!!
Imediatamente o gigante entrou em transe e começou a fazer
problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender
cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o
malabarismo dos nossos jogadores. O gigante se desencantara, virando
menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e
confessou-me com um orgulho caloroso:
─ I Flamengo! I Rubens!
Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um
ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens.
─ You! Flamengo?
Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou morte, e também gritei descaradamente:
─ Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!
(Obra retirada do facebook de Leonardo Valdez)
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