segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Na escuridão miserável

Fernando Sabino

Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente, encostada ao poste como um ani
malzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:

-O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente pensando tratar-se de esmola.


-Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.


-O que é que você está me olhando aí?


-Nada não senhor - repetiu. - Esperando o bonde...


-Onde é que você mora?


-Na Praia do Pinto.


-Vou para aquele lado. Quer uma carona?


Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:


-Entra aí, que eu te levo.


Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:


-Como é o seu nome?


- Teresa.


- Quantos anos você tem, Teresa?


-Dez.


-E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?


-A casa da minha patroa é ali.


-Patroa? Que patroa?


Pela sua resposta pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava, varria a casa, servia a mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.


-Hoje saí mais cedo. Foi jantarado.


-Você já jantou?


-Não. Eu almocei.


-Você não almoça todo dia?


-Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida para mim.


-E quando não tem?


-Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês.


-Mas não te dão comida lá? - perguntei, revoltado.


- Quando eu peço eles me dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse pra eu não pedir.


-E quanto você ganha?


-Mil cruzeiros.


-Por mês?


Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro, tomado de indignação. Meu impulso era voltar, bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.


-Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa? - perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar:


-Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí noutro dia pediu à mamãe pra eu trabalhar na casa dela então mamãe deixou porque mamãe não pode ficar com os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, brigado.


Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto.
 
Obra retirada do facebook de Leonardo Valdez.

A menininha e o gerente

Carlos Drummond de Andrade

- Não, paizinho, não! Quero ir com você!

- Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não é próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me esperando aqui.

- Não, não! - a garotinha soluçava. Agarrou-se à calça do pai como quem se agarra a uma prancha no mar.

Ele insistia:

- Que bobagem, uma menina de sua idade fazendo um papelão desses.

- Você não volta!

- Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

Prometendo, ele passeava o olhar pela rua, impaciente.

Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante da papelaria. O gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:

- Faz-me o obséquio de tomar conta de minha filha por alguns instantes? Vou a um lugar desagradável, não posso levá-la comigo.

- Mas...

- Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, hein? E sumiu.

A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.

- Vem cá. Ela não se mexeu.

- Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene?

Como não respondesse, o gerente foi desfiando nomes, sem esperança de acertar. Mas ao dizer "Estela", a cabecinha moveu-se, confirmando.

- Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?

Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada. Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o gerente mostrava-lhe a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200 cruzeiros.

- Olha um gatinho. Ele mora aqui?

- Mora. - E que é que ele come?

- Papel. - Mentiroso!

- Então pergunte a ele.

O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a dormir, desta vez nos braços de Estela. O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze minutos, o homem não aparecia. "Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?" Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível. Já pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:

- Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada para me mostrar? Ele abarcou com a vista a loja toda e sentiu-a mal sortida, pobre. "Eu devia ter aberto uma loja de brinquedos, pelo menos um bazar." Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava de um lado para outro, dona do negócio. Ele, inquieto. - Não mexa nas gavetas, filhinha.

- Não sou sua filhinha.

- Desculpe.

- Desculpo se você deixar eu abrir.

- Então deixo. Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal. E ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e o homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as filas de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.
Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu. "Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás, a cara dele era de calhorda. Ainda bem que me escolheu." Levaria Estela para casa, a mulher não ia estranhar, fariam dela uma filha - a filha que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru.
E se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega sua filha a um estranho, diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta, merece ter filha?

O empregado arriava a cortina de aço quando apareceram duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.

- Dá licença? Demorei mais do que pensava, desculpe. Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha. O gerente virou o rosto, para não ver, mas chegou até ele a despedida de Estela:

- Até logo, homem do balão! E a filha ficou mais longe ainda, no Peru.
 
Obra retirada do facebook de Leonardo Valdez. 

A minha glória literária

Rubem Braga

“Quando a alma vibra, atormentada..."


Tremi de emoção ao ver essas palavras impressas. E lá estava o meu nome, que pela primeira vez eu via em letra de fôrma. O jornal era O Itapemirim, órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do Colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim, Estado do Espírito Santo.


O professor de Português passara uma com
posição: A Lágrima. Não tive dúvidas: peguei a pena e me pus a dizer coisas sublimes. Ganhei 10, e ainda por cima a composição foi publicada no jornalzinho do colégio. Não era para menos:

"Quando a alma vibra, atormentada, às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e esta pérola de amargura arrebatada pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima."


É claro que eu não parava aí. Vêm, depois, outras belezas; eu chamo a lágrima de "traidora inconsciente dos segredos d'alma", descubro que ela "amolece os corações mais duros" e também (o que é mais estranho) "endurece os corações mais moles". E acabo, com certo exagero, dizendo que ela foi "sempre, através da História, a realizadora dos maiores empreendimentos, a salvadora miraculosa de cidades e nações, talismã encantado de vingança e crime, de brandura e perdão".


Sim, eu era um pouco exagerado; hoje não me arriscaria a afirmar tantas coisas. Mas o importante é que minha composição abafara e tanto que não faltou um colega despeitado que pusesse em dúvida a sua autoria: eu devia ter copiado aquilo de algum almanaque.


A suspeita tinha seus motivos: tímido e mal falante, meio emburrado na conversa, eu não parecia capaz de tamanha eloquência. O fato é que a suspeita não me feriu, antes me orgulhou; e a recebi com desdém, sem sequer desmentir a acusação. Veriam, eu sabia escrever coisas loucas; dispunha secretamente de um imenso estoque de "corações amargurados", "pérolas da amargura" e "talismãs encantados" para embasbacar os incréus; veriam...


Uma semana depois, o professor mandou que nós todos escrevêssemos sobre a Bandeira Nacional.

Foi então que — dá-lhe Braga! — meti uma bossa que deixou todos maravilhados. Minha composição tinha poucas linhas, mas era nada menos que uma paráfrase do Padre-Nosso, que começava assim: "Bandeira nossa, que estais no céu..."

Não me lembro do resto, mas era divino. Ganhei novamente 10, e o professor fez questão de ler, ele mesmo, a minha obrinha para a classe estupefata. Essa composição não foi publicada porque O Itapemirim deixara de sair, mas duas meninas — glória suave! — tiraram cópias, porque acharam uma beleza.


Foi logo depois das férias de junho que o professor passou nova composição: Amanhecer na Fazenda. Ora, eu tinha passado uns quinze dias na Boa Esperança, fazenda de meu tio Cristóvão, e estava muito bem informado sobre os amanheceres da mesma. Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos, galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo... e, no fim, achei que ficava bonito, para fazer pendant com essa vaca mugindo (assim como "consoladora como a esperança" combinara com "ardente como o desejo"), um "burro zurrando". Depois fiz parágrafo, e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de ouro:


"Um burro zurrando escandalosamente."


Foi minha desgraça. O professor disse que daquela vez o senhor Braga o havia decepcionado, não tinha levado a sério seu dever e não merecia uma nota maior do que 5; e para mostrar como era ruim minha composição leu aquele final: "um burro zurrando escandalosamente".


Foi uma gargalhada geral dos alunos, uma gargalhada que era uma grande vaia cruel. Sorri amarelo. Minha glória literária fora por água abaixo.
 
Obra returada do facebook de Leonardo Valdez.

Gente boa e gente inútil

Paulo Mendes Campos

Conheci um rapaz que, há uns vinte anos, ganhou uma bolsa para estudar anatomia patológica nos EUA, e nunca mais voltou. Americanizou-se? Encantou-se? Ficou rico? Não, nada disso, mora numa cidadezinha gelada quase na fronteira do Canadá, tem um ordenado que lhe basta apenas para as despesas fundamentais, não se diverte, gasta os dias e boas horas da noite metido num laboratório. Foi incorporado aos pesquisadores de câncer. Notaram-lhe o talento, pediram-lhe que ficasse, e ele ficou. Brilhante entre os mais brilhantes alunos que passaram pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, desistiu do futuro, largou tudo, fez-se anônimo e pobre, ingressou num claustro leigo, só deixando o seu trabalho para gemer um pouco de frio e saudade do Brasil, antes de dormir.

Homens como o Doutor Albert Schweitzer, capazes de trocar um destino artístico ou literário por um devotamento humanitário, são os santos de nosso tempo. A frieza de um laboratório, no entanto, ainda me parece um mundo mais estranho e árido do que a África Equatorial Francesa. Amar os homens por detrás de um microscópio, sem sentir nunca a reciprocidade do gesto generoso, é fantástico e humilhante para mim, tíbio comodista. Os fatos são duros. Aperta-se o cerco contra o câncer nos EUA e em outros países. A conquista do espião interplanetário não é tão emocionante quanto essa luta contra a morte. Antigamente, as epidemias chegavam de repente e dizimavam povos inteiros. As pestes modernas tomam aspecto moderno. As estatísticas sabem que 450 mil americanos serão vítimas do câncer este ano; destes, 260 mil estão condenados à morte. Sabe-se ainda, por exemplo, que no Norte dos EUA diminui a mortalidade por leucemia, mas no Sul a incidência mortal vem sendo acrescida. O mal é misterioso e aterroriza. Só não aterroriza o cientista escondido entre paredes assépticas, a isolar vírus, a traçar esquemas táticos, a vislumbrar esperanças, a chocar-se contra desilusões, a repetir, com o poeta, que cada nova tentativa é um fracasso diferente. É preciso usar nesta guerra - fala agora um cientista famoso - de todas as coisas que conquistaram mundos.

Admiro gente assim com a mais pura e selvagem simpatia de meu espírito.

Visitei há alguns anos o Instituto Pavlov, perto de Leningrado. Lá, em uma sala modesta e também fria, fui apresentado a um homem muito magro, desleixado no vestir, cabelos despenteados e de uma timidez de quem não tem o hábito de falar muito. Era um cientista famoso, chamava-se Victor Fiodorov. Pacientemente, ele me explicou a natureza das experiências que vinha realizando há longos anos, no sentido de tentar obter uma informação mais precisa sobre o câncer e a transmissão dos caracteres adquiridos. Contou-me com certa ternura a vida dos ratinhos assustados, detalhou-me suas idas e vindas, indutivas e dedutivas, pistas falsas, equívocos, surpresas repentinas, observações novas para a ciência, fez-me enfim um relatório completo daquilo que era a sua própria existência. Depois calou-se. Nesse ponto, naturalmente, ocorreu-me perguntar-lhe a que conclusão final chegara. O homem magro sorriu um sorriso decepcionado de criança que não ganhou presente, e respondeu-me: "Ainda não cheguei a qualquer conclusão; não há nada que me diga que eu haja contribuído para a cura do câncer".

Quando cheguei lá fora, num silêncio gravado pela neve e pelo grito estrídulo das gralhas no alto dos abetos, compreendi que não poderia esquecer aquele sorriso nunca mais. Não faço nada pelo bem de ninguém e, decerto, faço mal a algumas pessoas. Mas o sorriso do cientista Fiodorov, ao revelar-me a sua frustração ao longo de tantos anos de trabalho, pelo menos me acusa e não me deixa esquecer de que vim ao mundo causando dores e sem procurar diminuir a dor de ninguém. Um inútil. Resta-me a vaidade vulgar de saber que não presto para nada, pois o bonito entre os intelectuais de hoje é não ter compaixão da humanidade. Azar meu, que tenho, e nada faço.

Obra retirada do facebook de Leonardo Valdez.